4.3.11

O Vieira


Hoje fui ao corte. Como sou gente fina, fui ao shopping. Paguei couro, fiquei sem cabelo e foi então, nesse preciso momento, que me lembrei de uma figura que marcou a minha vida - O Vieira, o meu barbeiro de infância.

O Vieira é um senhor de 70 anos, mais coisa menos coisa, e pelo que sei continua vivo e bem vivo. Natural de lá de "xima", nos meados dos anos 60 abandonou o mundo rural e tentou a sua sorte, abrindo a barbearia na agitada freguesia de Guifões. Homem de elevado talento, em especial no corte da tigelinha e da patilha rapada "à João Pinto", em pouco tempo conseguiu transformar o seu estabelecimento numa autêntica Meca do pente e tesoura. Dias com 10, uma dúzia de clientes...ou mais! Esta barbearia sem nome na porta, à qual todos se habituaram a chamar de O Vieira, prosperava e em pouco tempo tornar-se-ia na mais importante da freguesia.

Até aos 8 anos era o meu avô que me levava lá. Sentava-me de lado, na bicicleta do velho António, e lá íamos nós, a caminho de mais um corte de cabelo e de uma tarde inteira na fila interminável de 4 clientes. O Vieira era lento, demorava mais ou menos 40 minutos para executar a sua obra de arte. Era importante chegar lá à hora da abertura, mas por vezes isso era impossível. O Vieira era um homem de bons modos, figura de egípcio e muito certo daquilo que dizia, sem no entanto soltar um palavrão, ser politicamente incorrecto, ou mesmo elevar a voz. Durante a espera líamos o jornal do dia, ou simplesmente falávamos uns com os outros. Falávamos não, os adultos falavam. Eu apenas assistia e aprendia questões importantes, como a época da apanha da batata ou coisas da política, que não percebia muito bem. Tudo isto era acompanhado de música ambiente, sempre um pouco estremecida, da rádio local.

Chegava a minha vez. Pensava "que alívio!", mas ainda me aguardavam 40 minutos naquela cadeira. Como a tecnologia era sofisticada e eu era baixote, O Vieira ia buscar uma espécie de malinha de madeira e colocava-a em cima da cadeira. Sentava lá o rabiosque e o problema era resolvido. Tudo nivelado. Categoria. "Ora como vai ser?"; "É como o costume.", respondia o meu avô. Porta-voz da mensagem ultra-secreta do "costume", era ele quem comandava as operações. Resta dizer que "o costume" era basicamente um corte ao estilo d´O Vieira. Cortar como se não houvesse amanhã e, ao fim de 40 minutos, o carrossel parava e estava pronto.

Foi n´O Vieira que vi as primeiras maminhas de menina. Anualmente, o senhor barbeiro presenteava os clientes com um calendário muy caliente. Ou era a menina atrás da palmeira. Ou a menina à frente do carro de corrida... O ponto comum em todos eles era o topless, coisa mais ou menos recente na época em questão. E também tinha alguns calendários de carros e motos, mas isso era só para disfarçar. O Vieira também fazia outro tipo de negócio. Uma pequena vitrina, com caixilhos de madeira e portas de vidro, de deslizar, expunha produtos de luxo, que podiam ser adquiridos na própria barbearia. Falo de pilhas da Tudor, atacadores Estrela, rebuçados S. Braz e umas barrinhas para se passar na cara. Uma montra de 5 estrelas. Enquanto cortava, tinha 3 opções. Ou olhava para o horrível corte que estava a ser feito, ou olhava para os belos produtos da vitrina, ou então para o calendário da menina (que se via bem pelo espelho da frente, mas não digam a ninguém!). Logo, optava por estas 2 últimas hipóteses. Se multiplicar 40 minutos pelo número de vezes que estive lá sentado, poderei afirmar com segurança que contabilizo umas boas dezenas de horas. Vitrina, maminhas, vitrina, maminhas...e passava assim o tempo.

Eram tardes de muita conversa, de debate aceso, mas educado. Havia quem entrasse e não fosse cortar o cabelo. O que importava era a conversa, o convívio e eu ali...com cara de burro a olhar para tudo. Mas não se estava mal.

Após algumas décadas de agitação guifonense, O Vieira resolveu voltar para a sua terra natal. Parece que abriu lá uma nova barbearia e está tudo bem com ele. Um abraço, senhor Vieira!

Lembrei-me d´O Vieira porque hoje, mais do que em qualquer um dos últimos dias, me pus a pensar no quanto a sociedade mudou em tão pouco tempo. No shopping as pessoas mal falam entre si e, quando o fazem, há sempre um intuito comercial por trás: "quer comprar este creme?", "já experimentou este champô?". Nunca vi o Vieira a sugerir fosse o que fosse da sua singela vitrina. Nunca vi um único cliente a comprar fosse o que fosse dali. E as pilhas da Tudor até davam muito jeito na altura (para levarmos o rádio para a praia, para o armanço). O Vieira não fazia isso porque o seu objectivo, além de cortar cabelos, era falar com as pessoas, falar do dia-a-dia, das notícias que corriam o mundo, da colheita que se estragou com a geada, do seu Benfica que ora ganhava, ora perdia... Era esse o prazer d´O Vieira, conhecer as pessoas, concordar e discordar delas, ser um Homem. O meu corte de hoje demorou, no máximo, uns 10 minutos. Fui bem tratado, diga-se, mas não vi nessa simpatia a pureza e o coração que mostrava O Vieira quando lá ia (e às vezes ele até andava com uma expressão bem sisuda). O corte de 40 minutos servia para juntar os vizinhos da terra mais uns minutos ali no seu estabelecimento, não importava a facturação, o paleio é que não podia faltar.

Nos nossos dias damos importância ao "despachar". Nem nos apercebemos que, quase sempre, é mais importante "ficar". Os dias continuam a ter as mesmas horas, o mundo gira à mesma velocidade. Porque será que tudo tem de ser assim tão rápido e material? Os tempos são outros, mas que se lixem os tempos. A vida social só poderá mudar para melhor quando resolvermos mudar o nosso comportamento, quando resolvermos ficar e esperar, como na barbearia d´O Vieira.

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